Oceano cósmico, caos e ordem


A terra era sem forma e vazia; havia trevas sobre as águas profundas, e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. Gn 1:2

  • Sem forma e vazia (תֹ֙הוּ֙ וָבֹ֔הוּ – Tohu va-bohu): Para a cultura hebraica seria similar ao que conhecemos como “nada”. Refere-se a um estado de desordem e falta de propósito. O problema foi introduzido e a solução será tomada deliberadamente e voluntariamente por Deus, que dará a esse “nada” tanto ordem quanto propósito.
  • Águas profundas (תְּהוֹם – Tehom): Frequentemente traduzida como “o abismo” ou “as profundezas”, essa palavra evoca a ideia de águas sem limites e insondáveis. O conceito é associado com as águas primordiais, caos, ou o desconhecido, que tem conexões com crenças antigas dos povos mesopotâmicos. A palavra pode derivar de uma raiz relacionada à deusa babilônica Tiamat, que representa o caos primordial e as águas salgadas.
  • Espírito de Deus (רוּחַ אֱלֹהִים – Ruach Elohim): Ruach em hebraico é a mesma palavra usada para vento e fôlego, frequentemente presente em ações próximas a águas. É mencionada no início da narrativa da criação como um elemento dinâmico e poderoso no ato de dar ordem ao caos. A respiração de Deus sobre as águas.
  • Se movia (מְרַחֶפֶת” – Merachefet): Ou “pairava”, a palavra usada em hebraico para descrever o movimento do Espírito de Deus sobre as águas implica um movimento suave ou planar, como o de uma ave sobrevoando algo. A figura do Espírito agindo como uma ave sobre as águas será futuramente repetida em algumas narrativas bíblicas.
  • Face das águas (פְּנֵי הַמַּיִם – P’nei HaMayim): Essas palavras descrevem a superfície das águas, indicando a parte das águas que está em contato com o “ar” ou o espaço acima delas. Tal espaço é descrito estar preenchido pelo Espírito de Deus. Repare como o termo água (ha-mayim) aqui se difere to termo anterior e no contraste entre profundezas e superfície.

A ideia de que o universo começou em um estado de caos (sem ordem) não é exclusiva da tradição judaico-cristã. Muitas mitologias antigas começam com o caos ou águas primordiais como o ponto de partida para a criação.

Tiamat é uma figura central no mito babilônico da criação, Enuma Elish,  onde ela é derrotada por Marduk, o deus da tempestade, que então usa partes de seu corpo para criar o céu e a terra.

O texto bíblico sugere uma distinção entre as profundezas caóticas, cobertas por trevas, e a superfície das águas, cobertas pelo Espírito de Deus. Este movimento do Espírito pode ser interpretado como uma ação de trazer ordem e preparação para a criação que está por vir, sugerindo a ideia de que Deus, por seu Espírito, está começando a trazer ordem a partir do caos. A expressão “face das águas” implica em uma proximidade entre Deus e onde o ato de criação está prestes a acontecer.

Enquanto Enuma Elish fala de deuses nascidos destas águas e conflitos subsequentes, Gênesis apresenta um único Deus que comanda a ordem soberanamente, sem oposição.

O que é particular em Gênesis 1 é a ausência de conflito entre deuses ou entre o criador e forças destrutivas. O relato bíblico narra Deus em total controle e sem nenhuma ameaça. Em vez disso, a ordem é estabelecida pacificamente e com autoridade.

Deus não luta contra forças caóticas para criar ordem; em vez disso, Ele simplesmente fala, e a ordem vem a ser, o que reflete uma visão monoteísta e soberana da criação.